Sunday, January 06, 2008

A saudade dele é de arder.













Chegamos à conclusão de que
ela está fadada a se queimar.
Desde pequena, sofrendo de ansiedade intensa,
acidentalmente derramou a fervente
sopa em sua perna direita.
A sopa da família esperava resfriar no canto
da pia daquela casa no centro.
Uma pia alta.
Ela que via o mundo de baixo, não imaginava
que se puxasse o cabo da panela a dor seria certa.
Não evitou, e com os olhos
sabidos que tinha, derramou.
Queimou, chorou e desesperou os familiares.
Passou praticamente três meses na cama,
isso aos três anos de idade.
Queimadura de terceiro grau.
Impaciente, só queria comer antes dos outros.
Não era fome, era pressa mesmo.
A pressa de viver que a acompanha até os dias de hoje.
O resultado desse doloroso fato foi a construção de
uma relação de amor e cuidados eternos
com seu já falecido tio Edival

Foi ele quem cuidou dela.
Todas as tarde, ainda se recorda...
Ele ia ao quarto, estourava-lhe as bolhas,
depois a mergulhava na banheira de plástico azul.
A água era gelada. Ela permanecia imóvel e imersa.
Era a melhor parte do dia. Era Alívio.
Sabe o que é sensação de alívio desde então.
Descobrira também a angústia.
Via isso nos olhos de sua mãe.
Lembra do som dos soluços no tom do choro dela contido.
De suas tias espiando de canto na porta.
Ninguém acompanhava os passos daquele tio médico gentil.
Assim, o tio Edival virou símbolo de coragem. Isso pra ela.
E confiança.
O tempo foi passando.
Luiza, todo verão mostrava ao tio a enorme mancha
da queimadura na perna direita sumindo com o crescimento.
Hoje restara apenas uma micro manchinha, ninguém nem a vê.
E ele com certeza, orgulha-se desse feito.
Ele orgulhava-se dela. Tratava-a como filha.
Pelo menos, assim ela sentia.
Com sua prima Bia, ela divertia,
comendo muita melancia nas tardes
quentes de verão que lá já fazia.
Quando tio Edival se aposentou
resolveu construir uma piscina.
_ É de última tecnologia.
Era ele quem dizia.
De fato, tinham poucas como
aquela nossa piscina no interior.
Chamou um carro pipa para enchê-la, Bia e Luiza.
E talvez esta tenha sido a tarde
mais gostosa da infância delas.
Ele também foi o primeiro a comprar um carro enorme por lá.
Besta. Usava para transportar o time de basquete do filho.
Era um cara legal. Gostavam dele o time todo.
E ele só gostava mesmo era de pescar.
Mantinha no freezer diversos pacus trazidos de suas viagens.
Será que aqueles peixes tinham nomes?
Nome não sei, mas tinham alma.
Era o xodó do tio aquele freezer.
Que tinha um só parceiro no tenis - Caiuby.
E era o dono das mais belas fotos da família.
É dele a melhor imagem do Francisco
(seu afilhado) vestido de cowboy.
E as do Enrico pequeno no parque.
Também com dom para poesia,
me desenhou anjos de consolo
antes de partir.

...

Luiza tinha doze quando o telefone
tocou numa tarde de casa vazia.
Ela escorou a tia que saiu às pressas e
recomendou que ficasse para receber sua prima.
Sigilo, secreto, segredo que grita mesmo
quando permanecemos em silêncio.
Jamais diria, não sabia.
Até assistir pela TV o acidente do tio no jornal.
A notícia era clara.
O guarda mostrava a identidade dele na tela.
Disfarçou para si em primeiro lugar.
Depois, aos outros que chegavam desesperados.
Ela conduzia todos ao sofá.
Fez apenas uma ligação. Para o seu pai.
Explicou.
Manteve-se.
Assim, sem derramar uma lágrima.
Como se não pudesse.

Foi chorar só depois de muitos dias.
Foi ouvir de sua tia palavras emocionadas
feitas de recortes daquele dia,
no seu aniversário de vinte e sete.
Hoje foi fazer café para uma amiga e
queimou-se com a água quente.
Doeu de amor recordar dele.

Teve vontade de chamá-lo.
Depois teve a impressão de que não precisava,
ele já estava.
Sorrindo como quem dissesse:
_É Luiza, você não aprende...
Esta sua pressa um dia te mata.
Vamos lá, água, gelo, pomada, você sabe bem o ritual.

A saudade dele é de arder.

2 comments:

betucury said...

E assim escreveu Fernando, o Pessoa: "Sou lenha a queimar pelo outro".

Anonymous said...

Tocante.
Ass. SP (ex anonimo)