Saturday, March 10, 2007

O Bem de Alzheimer. por LP para sua avó de 83.

Minha avó Edna foi uma vovó perfeita.
Era adorada pelas crianças da vizinhança,
que admiravam suas aptidões culinárias.
Os adultos também!
Pode perguntar para qualquer tia minha
sobre as coxinhas que a Dona Edna
(ou tia Pipa, como a chamam alguns) fazia.
Doces e salgados eram suas especialidades.
Parceria perfeita. Ela cozinhava e eu comia.
Praticamente, sua vida se resumia à cozinha,
costura, aos netos, animais de estimação
(inclui-se aí gatos, galinhas, tartarugas e
cachorros todos convivendo juntos, muito bem obrigada),
plantas no jardim (orquídeas, rosas, pés de limão, mamão,
bananeira, pitanga, goiaba...) e as leituras no jornal pela manhã.
Ela era e é até hoje sócia da ACM,
mas nunca freqüentou. Nem mesmo a piscina.
Nunquinha!Sempre me dizia que precisava
matricular-se nas aulas de lá,
mas faltou-lhe espírito esportivo talvez.
Exercitar-se realmente nunca foi o seu forte.
E isso pouco nos importava.
A diversão era mesmo outra.
A diversão éramos nós, a TV, os bolos que fazíamos e
minhas confissões de adolescentes jamais ignoradas.
Eu aproveitei da companhia dela.

Vovó sempre me pareceu uma pessoa feliz,
apesar de eu saber (por alto) que sua vida não fora nada fácil.
Mas este é um assunto inexplorado por enquanto,
então, o que posso garantir é que ela é simplesmente uma senhora forte.
Lembro-me que até bem pouco tempo atrás,
ela usava banha de porco na cozinha e
isso deixava minha mãe de cabelos em pé.
Também cortava a grama do seu jardim, abaixada,
de cócoras, com uma tesoura gigante nas mãos.
Isso me amedrontava. Mas, foi com a vovó Eca
(meu apelido para ela) que eu aprendi parte das coisas boas da vida.
Ela sabia preencher o nosso tempo.
Me orientava, me contava histórias e me protegia.
Na época da faculdade foi minha modelo nas aulas
de desenho, pintura e fotografia.
Foi sempre meu foco. Minha benção.
Sofria com ela, ria com ela e fazíamos lanchinhos
incríveis no cair da tarde.
Se ela está bem, estou bem, funciona assim pra mim.

De uns anos pra cá, vovó foi deixando de cozinhar.
De cortar a grama, as unhas, os cabelos.
Deixou de fazer compras. Sua despensa ficou vazia,
com apenas o pó de café na prateleira.
Ela foi ficando dependente da mamãe.
Dia após dia. E aquilo que os médicos diziam ser apenas
sintomas de uma velhice prescrita, ganhou o nome de um alemão:
ALZHEIMER. O mal de Alzheimer. Mal?!
Vejamos pelo lado positivo:

Vovó não cozinha mais.
Mas deixou boas lembranças, cheiros e sabores só dela.
Odeia ajudar a descascar batatas ou cebolas. Xinga.
Acha definitivamente que já fez a sua parte.
Almoça todos os dias no mesmo horário.
Nós fazemos o seu prato, cortamos o seu bifinho e
colocamos o seu pãozinho ao lado.
O copo de Fanta não pode faltar, nem no almoço, nem no jantar.
Há três anos ganhou uma amiga, a Rosa, sua bisneta.
Elas brincam juntas de quebra-cabeça, de pintura e desenho.
E como boas amigas que são, brigam de vez em quando.
Mas vovó logo esquece... Está sempre conhecendo gente nova.
Todos os dias fica sabendo com surpresa de alguma novidade velha.
De alguém que já morreu ha mais de dez anos e ela não sabia,
de alguém que se casou ha mais de trinta anos e ela não sabia.
E é sem constrangimento que ela encara as novidades,
como se o mundo tivesse escondido todas as informações dela.
Não se questiona. Nem nós a ela.
Assim, qual é o problema?
Nenhum. Não tem tempo ruim, afinal,
nada parece fazer muito sentido.

Deixou de gostar tanto de tantos animais.
Agora mantém relações estreitas e complexas
com apenas um cão, Caramelo.
E diz que ele a adora e a maior demonstração disso
são os beijos na pontinha do nariz. Focinho com focinho!
Ela odeia tomar banho, lavar a cabeça então, é a morte!!!
E por incrível que pareça tem uma flexibilidade incrível,
abaixa-se com facilidade para lavar o tornozelo. É de dar inveja!
Eu fico bem na frente do chuveiro fiscalizando as partes limpas
e elogiando a sabedoria das espumas por ela criada.
Ainda vai a missa aos domingos, religiosamente de agasalho,
porque para ela está sempre frio. Odeia os ventiladores.
Gostou muito de ir à praia no último verão, mas já não se lembra:
_ Eu fui mesmo? Não sabia não...
Adora sorvete de creme com calda de chocolate,
é sua sobremesa preferida.
Gosta de assistir filmes na TV com ou sem legenda, não importa.
Ela sente as imagens. Não gosta muito de conversar, aliás,
tem estado a cada dia mais quieta, calada. Não faz mal.
A gente já decidiu que ela tem de estar junto
mesmo não estando, entende?!
E é nessas reuniões em que ela se limita a
olhar para o teto que sai um:
_Que pereréco!
Pereréco pra cá, pereréco pra lá,
nós vamos acabar patenteando e expressão
criada por ela para denominar uma
dificuldade ou uma cagada de alguém.

Vovó Edna, que fez o seu próprio vestido de noiva,
é viúva desde que eu nasci, mas não tirava sua gasta
aliança por nada nesse mundo. Isso não seria problema
se o seu dedo gordinho não estivesse sendo dividido ao meio pelo anel.
Era uma questão de princípios! Mas a esta altura do campeonato...
Ganhei! No último fim de semana que passamos juntas,
resolvi pedir emprestada e ela não hesitou em me dar.
Porém, passou domingo todo perguntado da aliança.
Parece piada! Temos dado boas risadas com a Vó Eca.
E não há nada melhor do que rir em família.
Temos curtido esta nova fase da vida dela. De forma orgânica.
Deixamos as teorias de lado. Vamos a cada dia sentindo-a.
Servindo-a. Paparicando, alimentando, medicando,
vestindo, trocando, beijando, alegrando, levando para passear
e ajeitando seus cabelos branquinhos como as nuvens do céu.
Ainda bem que ela está aqui, fazendo-nos companhia.
Fazendo a vida de todos nós ficar mais leve, mais branda.
Apenas por existir.
E é quando colocamos a vovó para dormir,
que sabemos que mais aquele dia valeu a pena,
porque como eu já disse, se ela está bem, estou bem, funciona assim.
E com minha Nona, não há mais tempo ruim.


Acesse também: botinhaderave.blogspot.com/
www.fotolog.com/ballsplace

5 comments:

Felipe Consentini said...

Lu,
Se é que posso te chamar assim, já me sinto um velho amigo seu, velho pq te conheci na OSE, amigo pq me identifico muito com seus textos.
Vc esta cada vez melhor, fiquei muito emocionado com o texto da sua avó, a maneira leve como vc tratou uma doença não tão leve. Parabéns!!!
Obs: Te leio pq é "de grátis"!!
Bjs
Felipe (pai da nicole) hahaha

Anonymous said...

incrível a maneira como deixou uma história tão triste, ficar tão bonita e alegre.
eu sei bem que é triste, acabei de perder minha avó que passou os últimos 6 anos com essa doença. ela não era mais ela...

espero que a sua vó Eca ainda esteja no comecinho dessa nova fase... se estiver, aproveite bastante porque, infelizmente, a tendência é piorar... e te garanto que é bem difícil escrever de uma maneira que pareça ser bom.

enfim, não queremos falar de tristeza, né?! você escreve muito bem e me identifiquei em várias frases. estarei sempre por aqui lendo textos novos...

beijos.

Anonymous said...

Muito sucesso pra Você o dobro em saúde pra vovó Eca!!

Estou sempre por aqui, com carinho DIEGO CARZA

Anonymous said...

Oi! Luiza
Aqui estamos em Ilhabela num dia frio e chuvoso hipnotizados com seus textos eu Tana, Marcio e Flavio nosso amigo artísta plástico. Pode ter certeza de que o que vale nesse mundo é o amor; ficamos emocionados com a sua crônica sobre Tia Edna. O Márcio gosta muito dela; ela cuidou dele como uma mãe durante uma época de sua infância. Ele não esquece o quão carinhosa e doce ela foi para ele.
O amor que emana da sua redação transcende Alzheimer, computador e o tempo.
Abraços com emoção!
Tana Pannunzio

Anonymous said...

eu pude sentir todo seu amor pela sua vovó. lindo,emocionante! e um milhão de momentos felizes com ela e pra ela.
beijo!